terça-feira, 28 de maio de 2013

CONTO MISSA DO GALO

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Missa do galo
Machado de Assis
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Missa do galo
Machado de Assis
Nunca pude entender a conversação que tive com
uma senhora, há muitos anos, contava eu
dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo
ajustado com um vizinho irmos à missa do galo,
preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à
meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do
escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras
núpcias, com uma de minhas primas. A segunda
mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me
bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de
Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia
tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do
Senado, com os meus livros, poucas relações,
alguns passeios. A família era pequena, o escrivão,
a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes
velhos. As dez horas da noite toda a gente estava
nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca
tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo
dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me
levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia
uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não
respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã
seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro
era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores
com uma senhora, separada do marido, e dormia
fora de casa uma vez por semana. Conceição
padecera, a princípio, com a existência da
comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumarase,
e acabou achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe .a santa., e fazia jus
ao título, tão facilmente suportava os
esquecimentos do marido. Em verdade, era um
temperamento moderado, sem extremos, nem
grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo
de que trato, dava para maometana; aceitaria um
harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe,
se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O
próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era
o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia
mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar;
pode ser até que não soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era
pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em
Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para
ver a .missa do galo na Corte.. A família recolheuse
à hora do costume; eu meti-me na sala da
frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor
da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três
chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu
levaria outra, a terceira ficava em casa.
- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo?
perguntou a mãe de Conceição.
- Leio, Dona Inácia.
Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros,
velha tradução creio do Jornal do Comércio. Senteime
à mesa que havia no centro da sala, e à luz de
um candeeiro de querosene, enquanto a casa
dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de
D.Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco
estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos
voavam, ao contrário do que costumavam fazer,
quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas
quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um
pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da
leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala
de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo
depois vi assomar à porta da sala o vulto de
Conceição.
- Ainda não foi? perguntou ela.-
- Não fui; parece que ainda não é meia-noite.
- Que paciência!
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas
da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado
na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão
romântica, não disparatada com o meu livro de
aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na
cadeira que ficava defronte de mim, perto do
canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia
acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu
com presteza:
- Não! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos
não eram de pessoa que acabasse de dormir;
pareciam não ter ainda pegado na sono. Essa
observação, porém, que valeria alguma cousa em
outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir
que talvez não dormisse justamente por minha
causa, e mentisse para não me afligir ou aborrecer.
Já disse que ela era boa, muito boa.
- Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
- Que paciência a sua de esperar acordado,
enquanto o vizinho dorme. E esperar sozinho! Não
tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que
se
assustasse quando me viu.
- Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora
apareceu logo.
- Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o
romance dos Mosqueteiros.
- Justamente: é muito bonito.
- Gosta de romances?
- Gosto.
- Já leu a Moreninha?
- Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
- Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por
falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição
ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar,
enfiando os olhos por entre as pálpebras meiocerradas,
sem os tirar de mim. De vez em quando
passava a língua pelos beiços, para umedecê-los.
Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos
assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar
a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o
queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira,
tudo sem desviar de mim os grandes olhos
espertos.
.Talvez esteja aborrecida., pensei eu.
E logo alto:
- D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu ...
- Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio;
são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a
noite, é capaz de não dormir de dia?
- Já tenho feito isso.
- Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou
que não posso, e, meia hora que seja, hei de
passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
- Que velha o quê, d. Conceição!
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De
costume tinha os gestos demorados e as atitudes
tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente,
passou para o outro lado da sala e deu alguns
passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete
do marido. Assim, com o desalinho honesto que
trazia, dava-me uma impressão singular. Magra
embora, tinha não sei que balanço no andar, como
quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me
pareceu tão distinta como naquela noite. Parava
algumas vezes, examinando um trecho de cortina
ou consertando a posição de algum objeto no
aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa
de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias;
tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu
repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira
missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.
- É a mesma missa da roça; todas as missas se
parecem.
- Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais
gente também. Olhe, a semana santa na Corte é
mais bonita que na roça. S. João não digo, nem
Santo Antônio . . .
Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os
cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto
entre as mãos espalmadas. Não estando
abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu
vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos
magros do que se poderiam supor. A vista não era
nova para mim, posto também não fosse comum;
naquele momento, porém, a impressão que tive foi
grande. As veias eram tão azuis, que apesar da
pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A
presença de Conceição espertara-me ainda mais
que o livro. Continuei a dizer o que pensava das
festas da roça e da cidade, e de outras cousas que
me iam vindo à boca. Falava emendando os
assuntos, sem saber por que, variando deles ou
tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e
ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos
iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros,
mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho
curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo.
Ouando eu alteava um pouco a voz, ela reprimiame:
- Mais baixo! mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de
gosto, tão perto ficavam as nossas caras.
Realmente, não era preciso falar alto para ser
ouvido; cochichá
vamos os dous, eu mais que ela, porque falava
mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a
testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de
atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentarse
do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a
furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que
ela gastou em sentar se, o roupão era comprido e
cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas.
Conceição disse baixinho:
- Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se
acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no
sono.
- Eu também sou assim.
- O quê? perguntou ela inclinando o corpo para ouvir
melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do
canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência;
também ela tinha o sono leve; éramos três sonos
leves.
- Há ocasiões em que sou como mamãe; acordando,
custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa,
levanto-me, acendo a vela, passeio, torno a deitarme,
e nada.
- Foi o que lhe aconteceu hoje.
- Não, não, atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também
não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e
bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho
direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois
referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que
só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu
os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente,
longamente, sem que eu desse pela hora nem pela
missa. Quando eu acabava uma narração ou uma
explicação, ela inventava outra pergunta ou outra
matéria, e eu pegava novamente na palavra. De
quando em quando, reprimia-me:
- Mais baixo, mais baixo . . .
Havia também umas pausas. Duas outras vezes,
pareceu-me que a via dormir; mas os olhos,
cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono
nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para
ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por
mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os
tornou a fechar, não sei se apressada ou
vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me
aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me,
atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é
que, em certa ocasião, ela, que era apenas
simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de
pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis
levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no
meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei
que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como
se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi
sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali
relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima
do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da
parede.
- Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a
Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam
do principal negócio deste homem. Um representava
.Cleópatra.; não me recordo o assunto do outro,
mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele
tempo não me pareciam feios.
- São bonitos, disse eu.
- Bonitos são; mas estão manchados. E depois
francamente, eu preferia duas imagens, duas
santas.
Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de
barbeiro.
- De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de
barbeiro.
- Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam,
falam de moças e namoros, e naturalmente o dono
da casa alegra a vista deles com figuras bonitas.
Em casa de família é que não acho próprio. É o que
eu penso; mas eu penso muita cousa assim
esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu
tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha
madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se
pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu
oratório.
A idéia do oratório trouxe-me a da missa,
lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo.
Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei
para ouvir o que ela contava, com doçura, com
graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha
alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava
das suas devoções de menina e moça. Em seguida
referia umas anedotas de baile, uns casos de
passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de
mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do
passado, falou do presente, dos negócios da casa,
das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas,
antes de casar, mas não eram nada. Não me
contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete
anos.
Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e
quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os
grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa
para as paredes.
- Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a
pouco, como se falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da
espécie de sono magnético, ou o que quer que era
que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não
queria acabar a conversação; fazia esforço para
arredar os olhos dela, e arredava-os por um
sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que
era aborrecimento, quando não era, levava-me os
olhos outra vez para Conceição. A conversa ia
morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso
dizer quanto, - inteiramente calados. O rumor único
e escasso, era um roer de camundongo no gabinete,
que me acordou daquela espécie de sonolência;
quis falar dele, mas não achei modo. Conceição
parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma
pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que
bradava: .Missa do galo! missa do galo!.
- Aí está o companheiro, disse ela levantando-se.
Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é
que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas;
adeus.
- Já serão horas? perguntei.
- Naturalmente.
- Missa do galo! repetiram de fora, batendo.
- Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha.
Adeus, até amanhã.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou
pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e
achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a
igreja. Durante a missa, a figura de Conceição
interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre;
fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na
manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo
e da gente que estava na igreja sem excitar a
curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a
como sempre, natural, benigna, sem nada que
fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo
Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao
Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido
de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo,
mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde
que casara com o escrevente juramentado do
marido.
FIM

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