quarta-feira, 29 de maio de 2013

conto

O Tesouro
O Tesouro
por
Eça de Queirós


Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.
Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse Inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde há muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.
Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam na relva nova de Abril, os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferro.
Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!
No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficavam mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as suas mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras de olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu o braço, com um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do Demónio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, e pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso, ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsinha, a comprar três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera; a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforges e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.
— Bem tramado! — gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até à fivela do cinturão.
Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:
— Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!
— Também eu quero a minha, mil raios! — rugiu logo Rostabal.
Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente, Guanes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:
Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglésia
Vestida de negro luto...
Na clareira, em frente à moita que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas retouçavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões-de-ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o Sol, bocejava com fome.
Então Rui, que tirara o sombrero e lhe confiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividira o ouro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guanes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tabernas.
— Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho, tivesse achado o ouro, não dividia connosco, Rostabal! O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:
 — Não, mil raios! Guanes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!
— Vês tu? — gritou Rui, resplandecendo. Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma ideia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.
— E para quê — prosseguia Rui. — Para que lhe serve todo o ouro que nos leva? Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até às outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobre, e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos...
— Pois que morra, e morra hoje! — bradou Rostabal.
— Queres?
Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guanes partira cantando:
— Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tabernas, sem pudor, Guanes te tratava de "cerdo" e de "torpe", por não saberes a letra nem os números.
— Malvado!
— Vem!
Foram. Ambos se emboscaram por trás de um silvado que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, já tinha a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos — e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo Sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando. E Rostabal, que lhes seguira o voo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforges
Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:
Olé! Olé!
Sale la cruz de la inglésia,
Vestida de negro luto...
Rui murmurou: — Na ilharga! Mal que passe! — O chouto da égua bateu o cascalho, uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.
Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada — e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guanes, quando ao rumor, bruscamente, ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou ao lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua — Rostabal, caindo sobre Guanes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.
 — A chave! — gritou Rui.
 E arrancada a chave do cofre do seio do morto, ambos largaram pela vereda — Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor do sangue que lhe espirrara com a boca; Rui atrás, puxava desesperadamente os freios da égua, que de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentaduça amarela, não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.
 Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada — e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada, e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.
 A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregadas com os alforges novos que Guanes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolegava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.
 Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara estalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo — e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.
 Agora eram dele, só dele, as três chaves do cofre!... E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de Dezembro, alguns ossos sem nome, ele seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos como? Como devem morrer os de Medranhos — a pelejar o Turco!
 Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois foi examinar a capacidade dos alforges — e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão.
 Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas a ave loura, que rescendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guanes fora bom mordomo — nem esquecera azeitonas. Mas porque trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorada a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa.
Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.
Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia — destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.
De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de ouro... Mas oscilou, largando os dobrões, que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui? Raios de Deus? Era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos, e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas de um suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:
 — Socorro! Alguém! Guanes! Rostabal!
 Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava — sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo.
 Cambeleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho ficando no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água, que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido.
Recuou, caiu para cima da relva, que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim a traição, todo o horror:
— É veneno!
Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás a catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.
Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que grasnava além dos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.
O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes.


terça-feira, 28 de maio de 2013

CONTO

A IGREJA DO DIABO
Capítulo I
De uma idéia mirífica
Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de
fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado
com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones,
sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e
obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja
do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra
breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas
e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a
minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se
dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero.
Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto
magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia,
e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: —
Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias
do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.
Capítulo II
Entre Deus e o Diabo
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que
engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada
com os olhos no Senhor.
— Que me queres tu? perguntou este.
— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os
Faustos do século e dos séculos.
— Explica-te.
— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse
bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam
com os mais divinos coros...
— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito
que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar
uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha
desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e
completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de
dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
— Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
— Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos
mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal
exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.
— Vai.
— Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da
tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja.
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no
espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve
instante de eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as
virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo
rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazêlas
todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...
— Velho retórico! murmurou o Senhor.
— Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo,
trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram
aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o
bigode do pecado. Vede o ardor, — a indiferença, ao menos, — com que esse cavalheiro
põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, — ou sejam roupas ou botas,
ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que
me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de
irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda...
Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram
no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie,
replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do
mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto
gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os
sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele
fez?
— Já vos disse que não.
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio,
ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já
com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a
água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos
outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as
virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os
serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo
sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
Capítulo III
A boa nova aos homens
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula
beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e
extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus
discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava
que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e
desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos
soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza,
a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso.
Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro,
fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes,
congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo
passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de
negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras
cínica e deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as
naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a
avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe
era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero;
sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de
Peleu..." O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos
bons versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de
Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de
lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela
virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares,
em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo
prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução
direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do
mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de
propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio
talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes
de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as
perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude.
Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos
homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era
exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não
fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um
casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade,
disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender
a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e
legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o
teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria
consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há
mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue
para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um
privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o
princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou
pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o
exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a
hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o
perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente
a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra
espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa,
e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração.
Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um
certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma
exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito
em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a
solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova
instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes
insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou
desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava
esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das
marquesas do antigo regime: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese
em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias,
porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o
amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação,
por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: —
Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não
cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo
foi incluído no livro da sabedoria.
Capítulo IV
Franjas e franjas
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava
em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham
alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição.
A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a
conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou
brados de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às
escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente,
mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer
frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos
avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário
restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o
coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam
embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e
viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista
do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas,
socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a
cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o
procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o,
com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá.
O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que
desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês,
varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na
campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meterse
na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo,
como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia
todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe
desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao
levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso
era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e
concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu,
trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus
ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou,
sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda,
como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição

humana.

CONTO

O ANEL DE POLÍCRATES
Machado de Assis
A

Lá vai o Xavier.
Z
Conhece o Xavier?
A
Há que anos! Era um nababo, rico, podre de rico, mas pródigo...
Z
Que rico? que pródigo?
A
Rico e pródigo, digo-lhe eu. Bebia pérolas diluídas em néctar. Comia línguas de rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó de diamante. E mulheres! Nem toda a pompa de Salomão pode dar idéia do que era o Xavier nesse particular. Tinha um serralho: a linha grega, a tez romana, a exuberância turca, todas as perfeições de uma raça, todas as prendas de um clima, tudo era admitido no harém do Xavier. Um dia enamorou-se loucamente de uma senhora de alto coturno, e enviou-lhe de mimo três estrelas do Cruzeiro, que então contava sete, e não pense que o portador foi aí qualquer pé-rapado. Não, senhor. O portador foi um dos arcanjos de Milton, que o Xavier chamou na ocasião em que ele cortava o azul para levar a admiração dos homens ao seu velho pai inglês. Era assim o Xavier. Capeava os cigarros com um papel de cristal, obra finíssima, e, para acendê-los, trazia consigo uma caixinha de raios do sol. As colchas da cama eram nuvens purpúreas, e assim também a esteira que forrava o sofá de repouso, a poltrona da secretária e a rede. Sabe quem lhe fazia o café, de manhã? A Aurora, com aqueles mesmos dedos cor-de-rosa, que Homero lhe pôs. Pobre Xavier! Tudo o que o capricho e a riqueza podem dar, o raro, o esquisito, o maravilhoso, o indescritível, o inimaginável, tudo teve e devia ter, porque era um galhardo rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna, fortuna! Onde estão agora as pérolas, os diamantes, as estrelas, as nuvens purpúreas? Tudo perdeu, tudo deixou ir por água abaixo; o néctar virou zurrapa, os coxins são a pedra dura da rua, não manda estrelas às senhoras, nem tem arcanjos às suas ordens ...
Z
Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier há de ser outro. O Xavier nababo! Mas o Xavier que ali vai nunca teve mais de duzentos mil-réis mensais; é um homem poupado, sóbrio, deita-se com as galinhas, acorda com os galos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as tem. Se alguma expede aos amigos é pelo correio. Não é mendigo, nunca foi nababo.
A
Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você fala de Marta, eu falo-lhe de Maria; falo do Xavier especulativo...
Z
Ah! - Mas ainda assim, não acho explicação; não me consta nada dele. Que livro, que poema, que quadro...
A
Desde quando o conhece?
Z
Há uns quinze anos.
A
Upa! Conheço-o há muito mais tempo, desde que ele estreou na rua do Ouvidor, em pleno marquês de Paraná. Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as coisas possíveis, e até contrárias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas, outra à lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos. Quem conversava com ele sentia vertigens. Imagine uma cachoeira de idéias e imagens, qual mais original, qual mais bela, às vezes extravagante, às vezes sublime. Note que ele tinha a convicção dos seus mesmos inventos. Um dia, por exemplo, acordou com o plano de arrasar o morro do Castelo, a troco das riquezas que os jesuítas ali deixaram, segundo o povo crê. Calculou-as logo em mil contos, inventariou-as com muito cuidado, separou o que era moeda, mil contos, do que eram obras de arte e pedrarias; descreveu minuciosamente os objetos, deu-me dois tocheiros de ouro...
Z
Realmente...
A
Ah! impagável! Quer saber de outra? Tinha lido as cartas do cônego Benigno, e resolveu ir logo ao sertão da Bahia, procurar a cidade misteriosa. Expôs-me o plano, descreveu-me a arquitetura provável da cidade, os templos, os palácios, gênero etrusco, os ritos, os vasos, as roupas, os costumes...
Z
Era então doido?
A
Originalão apenas. Odeio os carneiros de Panúrgio, dizia ele, citando Rabelais: Comme vous sçavez estre du mouton le naturel, tousjours suivre le premier, quelque part qu'il aille. Comparava a trivialidade a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava que antes comer um mau bife em mesa separada.
Z
Entretanto, gostava da sociedade.
A
Gostava da sociedade, mas não amava os sócios. Um amigo nosso, o Pires, fez-lhe um dia esse reparo; e sabe o que é que ele respondeu? Respondeu com um apólogo, em que cada sócio figurava ser uma cuia d'água, e a sociedade uma banheira. - Ora, eu não posso lavar-me em cuias d'água, foi a sua conclusão.
Z
Nada modesto. Que lhe disse o Pires?
A
O Pires achou o apólogo tão bonito que o meteu numa comédia, daí a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o apólogo no teatro, e aplaudiu-o muito, com entusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a voz do sangue... Isto leva-me à explicação da atual miséria do Xavier.
Z
É verdade, não sei como se possa explicar que um nababo...
A
Explica-se facilmente. Ele espalhava idéias à direita e à esquerda, como o céu chove, por uma necessidade física, e ainda por duas razões. A primeira é que era impaciente, não sofria a gestação indispensável à obra escrita. A segunda é que varria com os olhos uma linha tão vasta de coisas, que mal poderia fixar-se em qualquer delas. Se não tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era um derivativo. As páginas que então falava, os capítulos que lhe borbotavam da boca, só precisavam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, para serem páginas e capítulos excelentes, alguns admiráveis. Nem tudo era límpido; mas a porção límpida superava a porção turva, como a vigília de Homero paga os seus cochilos. Espalhava tudo, ao acaso, às mãos cheias, sem ver onde as sementes iam cair; algumas pegavam logo...
Z
Como a das cuias.
A
Como a das cuias. Mas, o semeador tinha a paixão das coisas belas, e, uma vez que a árvore fosse pomposa e verde, não lhe perguntava nunca pela semente sua mãe. Viveu assim longos anos, despendendo à toa, sem cálculo, sem fruto, de noite e de dia, na rua e em casa, um verdadeiro pródigo. Com tal regime, que era a ausência de regime, não admira que ficasse pobre e miserável. Meu amigo, a imaginação e o espírito têm limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol. O Xavier não só perdeu as idéias que tinha, mas até exauriu a faculdade de as criar; ficou o que sabemos. Que moeda rara se lhe vê hoje nas mãos? que sestércio de Horácio? que dracma de Péricles? Nada. Gasta o seu lugar-comum, rafado das mãos dos outros, come à mesa redonda, fez-se trivial, chocho...
Z
Cuia, enfim.
A
Justamente: cuia.
Z
Pois muito me conta. Não sabia nada disso. Fico inteirado; adeus.
A
Vai a negócio?
Z
Vou a um negócio.
A
Dá-me dez minutos?
Z
Dou-lhe quinze.
A
Quero referir-lhe a passagem mais interessante da vida do Xavier. Aceite o meu braço, e vamos andando. Vai para a praça? Vamos juntos. Um caso interessantíssimo. Foi ali por 1869 ou 70, não me recordo; ele mesmo é que me contou. Tinha perdido tudo; trazia o cérebro gasto, chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem, nada. Basta dizer que um dia chamou rosa a uma senhora, - "uma bonita rosa"; falava do luar saudoso, do sacerdócio da imprensa, dos jantares opíparos, sem acrescentar ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe. Começara a ficar hipocondríaco; e, um dia, estando à janela, triste, desabusado das coisas, vendo-se chegado a nada, aconteceu passar na rua um taful a cavalo. De repente, o cavalo corcoveou, e o taful veio quase ao chão; mas sustentou-se, e meteu as esporas e o chicote no animal; este empina-se, ele teima; muita gente parada na rua e nas portas; no fim de dez minutos de luta, o cavalo cedeu e continuou a marcha. Os espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem, o sangue-frio, a arte do cavaleiro. Então o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavaleiro não tivesse ânimo nenhum; não quis cair diante de gente, e isso lhe deu a força de domar o cavalo. E daí veio uma idéia: comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente: Quem não for cavaleiro, que o pareça. Realmente, não era uma idéia extraordinária; mas a penúria do Xavier tocara a tal extremo, que esse cristal pareceu-lhe um diamante. Ele repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de vários modos, ora na ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento; ora dando-lhe a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.; e tão alegre, tão alegre como casa de pobre em dia de peru. De noite, sonhou que efetivamente montava um cavalo manhoso, que este pinoteava com ele e o sacudia a um brejo. Acordou triste; a manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu; meteu-se a ler e a cismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do anel de Polícrates?
Z
Francamente, não.
A
Nem eu; mas aqui vai o que me disse o Xavier. Polícrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da Fortuna, e, para aplacá-la antecipadamente, determinou fazer um grande sacrifício: deitar ao mar o anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna andava tão apostada em cumulá-lo de obséquios, que o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à posse do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando Plínio, citando...
Z
Não ponha mais na carta. O Xavier naturalmente comparou a vida, não a um cavalo, mas...
A
Nada disso. Não é capaz de adivinhar o plano estrambótico do pobre-diabo. Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos se a minha idéia, lançada ao mar, pode tornar ao meu poder, como o anel de Polícrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão.
Z
Ora essa!
A
Não é estrambótico? Polícrates experimentara a felicidade; o Xavier quis tentar o caiporismo; intenções diversas, ação idêntica. Saiu de casa, encontrou um amigo, travou conversa, escolheu assunto, e acabou dizendo o que era a vida, um cavalo xucro ou manhoso, e quem não for cavaleiro que o pareça. Dita assim, esta frase era talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua tristeza, o desconsolo dos anos, o malogro dos esforços, ou antes os efeitos da imprevidência, e quando o peixe ficou de boca aberta, digo, quando a comoção do amigo chegou ao cume, foi que ele lhe atirou o anel, e fugiu a meter-se em casa. Isto que lhe conto é natural, crê-se, não é impossível; mas agora começa a juntar-se à realidade uma alta dose de imaginação. Seja o que for, repito o que ele me disse. Cerca de três semanas depois, o Xavier jantava pacificamente no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro bem, e ouviu de outra mesa a mesma frase sua, talvez com a troca de um adjetivo. "Meu pobre anel, disse ele, eis-te enfim no peixe de Polícrates." Mas a idéia bateu as asas e voou, sem que ele pudesse guardá-la na memória. Resignou-se. Dias depois, foi convidado a um baile: era um antigo companheiro dos tempos de rapaz, que celebrava a sua recente distinção nobiliária. O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi, porque entre o sorvete e o chá ouviu de um grupo de pessoas que louvavam a carreira do barão, a sua vida próspera, rígida, modelo, ouviu comparar o barão a um cavaleiro emérito. Pasmo dos ouvintes, porque o barão não montava a cavalo. Mas o panegirista explicou que a vida não é mais do que um cavalo xucro ou manhoso, sobre o qual ou se há de ser cavaleiro ou parecê-lo, e o barão era-o excelente. "- Entra, meu querido anel, disse o Xavier, entra no dedo de Polícrates." Mas de novo a idéia bateu as asas, sem querer ouvi-lo. Dias depois...
Z
Adivinho o resto: uma série de encontros e fugas do mesmo gênero.
A
Justo.
Z
Mas, enfim, apanhou-o um dia.
A
Um dia só, e foi então que me contou o caso digno de memória. Tão contente que ele estava nesse dia! Jurou-me que ia escrever, a propósito disto, um conto fantástico, à maneira de Edgard Poe, uma página fulgurante, pontuada de mistérios, - são as suas próprias expressões; - e pediu-me que o fosse ver no dia seguinte. Fui; o anel fugira-lhe outra vez. "Meu caro A, disse-me ele, com um sorriso fino e sarcástico; tens em mim o Polícrates do caiporismo; nomeio-te meu ministro honorário e gratuito." Daí em diante foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha pôr a mão em cima da idéia ela batia as asas, plás, plás, plás, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho. Outro peixe a engolia e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas dos casos que ele me contou naquele dia, quero dizer-lhe três...
Z
Não posso; lá se vão os quinze minutos.
A
Conto-lhe só três. Um dia, o Xavier chegou a crer que podia enfim agarrar a fugitiva, e fincá-la perpetuamente no cérebro. Abriu um jornal de oposição, e leu estupefato estas palavras: "O ministério parece ignorar que a política é, como a vida, um cavalo xucro ou manhoso, e, não podendo ser bom cavaleiro, porque nunca o foi, devia ao menos parecer que o é." - "Ah! enfim! exclamou o Xavier, cá estás engastado no bucho do peixe; já me não podes fugir." Mas, em vão! a idéia fugia-lhe, sem deixar outro vestígio mais do que uma confusa reminiscência. Sombrio, desesperado, começou a andar, a andar, até que a noite caiu; passando por um teatro, entrou; muita gente, muitas luzes, muita alegria; o coração aquietou-se-lhe. Cúmulo de benefícios; era uma comédia do Pires, uma comédia nova. Sentou-se ao pé do autor, aplaudiu a obra com entusiasmo, com sincero amor de artista e de irmão. No segundo ato, cena VIII, estremeceu. "D. Eugênia, diz o galã a uma senhora, o cavalo pode ser comparado à vida, que é também um cavalo xucro ou manhoso; quem não for bom cavaleiro, deve cuidar de parecer que o é." O autor, com o olhar tímido, espiava no rosto do Xavier o efeito daquela reflexão, enquanto o Xavier repetia a mesma súplica das outras vezes: - "Meu querido anel..."
Z
Et nunc et semper... Venha o último encontro, que são horas.
A
O último foi o primeiro. Já lhe disse que o Xavier transmitira a idéia a um amigo. Uma semana depois da comédia cai o amigo doente, com tal gravidade que em quatro dias estava à morte. O Xavier corre a vê-lo; e o infeliz ainda o pôde conhecer, estender-lhe a mão fria e trêmula, cravar-lhe um longo olhar baço da última hora, e, com a voz sumida, eco do sepulcro, soluçar-lhe: "Cá vou, meu caro Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da vida deitou-me ao chão: se fui mau cavaleiro, não sei; mas forcejei por parecê-lo bom." Não se ria; ele contou-me isto com lágrimas. Contou-me também que a idéia ainda esvoaçou alguns minutos sobre o cadáver, faiscando as belas asas de cristal, que ele cria ser diamante; depois estalou um risinho de escárnio, ingrato e parricida, e fugiu como das outras vezes, metendo-se no cérebro de alguns sujeitos, amigos da casa, que ali estavam, transidos de dor, e recolheram com saudade esse pio legado do defunto. Adeus.